Búzios
(Suave, mas nem tanto, na nave)
Deus, certa vez, numa crônica (Inquilinos) de Luís Fernando Veríssimo, vem à Terra e pede a
devolução do mundo tal e qual ele nos entregara. Nem a Catedral de Chartres é
capaz de demover Deus da ideia de que o mundo criado por Ele era mais lindo do
que o mundo com as “melhorias” implementadas pela humanidade. Chartres levou
mais de trezentos anos para ser concluída, no auge da Idade Média, uma época em
que não contávamos com grandes saberes da ciência para superar problemas de
cálculo e estrutura. Foi erguida por uma comunidade que viveu sob a égide do temor
a Deus e da Igreja Católica, que sabe-se lá quanta gente mandou para a fogueira
durante os trezentos anos que a sua construção durou. E é um monumento à Arte. Uma
ode ao Belo. Tive a oportunidade de estar em Chartres por mais de uma vez e é
um desses lugares no mundo aonde voltaria sempre que pudesse (acho que LFV
também, já que a Catedral é tema
recorrente nas suas crônicas). Conheço outras catedrais góticas, talvez, até
mais importantes do que Chartres, mas – de fato – há algo ali que nos aproxima
do divino. É bem verdade que temos estragado o mundo que Deus criou com a nossa
ganância e ignorância estética, mas – Deus que me perdoe – Chartres constitui
exceção. Suponho que, se estragar a obra divina for mesmo uma imposição da
nossa natureza humana, ao menos que possamos estragá-la com construções da
grandeza de Chartres. E aqui não me refiro apenas à Catedral, mas também à
cidade com suas modestas casinhas aldeãs, que se curvam ante a imponência da Catedral, como se tudo e todos soubessem exatamente onde caber para que sacralidade do lugar possa por alguns instantes nos transportar para outro mundo e outros tempos.
Enfim, mas é de Búzios que venho falar. Com um oceano de
distância, aqui para os lados da América do Sul, mais precisamente no Estado do
Rio de Janeiro, fica Búzios. Essa joia do litoral fluminense que encantou
Brigitte Bardot. Uma cidade que soube se iniciar com a modéstia dos pescadores
da região, que construíram na sua orla casas singelas e simpáticas condizentes com
a exuberância da natureza que não admitia concorrência. Ainda hoje esse núcleo
pitoresco sobrevive, testemunha de uma cidade que, assim como sua musa,
homenageada numa estátua de bronze de gosto duvidoso, foi bela. Deslumbrante! Mas – diferentemente
de Chartres – Búzios foi vítima – assim como tantas outras cidades do litoral
brasileiro – da ganância especulativa, da falta de planejamento urbano, do mau
gosto de uma elite que reproduz no seu quintal - sem nenhuma espécie de senso
estético – os padrões arquitetônicos do cenário da última novela da Globo, sem
falar nos abomináveis condomínios, presídios residenciais, que se multiplicam
como praga de norte a sul do país.
Tragicamente, essa força vital de mar, sol e florestas da
Mata Atlântica, recortada num litoral pontilhado por um relevo de rochas do
Período Cambriano, encontra-se agora solapada por uma rede viária improvisada,
ladeada por um comércio de ocasião que – esse sim, Deus, não valeu nenhuma flor
de cada árvore derrubada – mas, principalmente, solapada por um sem-número de
construções que se pretendem luxuosas, mas que se repetem na sua única função de
fazer a gente perder a fé na humanidade. Tudo é impróprio: a qualidade do material
de construção, as janelas claustrofóbicas de madeira, que pretendem imitar
casas do norte europeu. O pé direito baixo, aumentando ainda mais a sensação de
claustrofobia que sentimos dentro dos imóveis. As muradas que se erguem acima
da altura do mar e nos impedem de avistar a lua, as ondas se quebrando e o
vento misterioso que se esfrega nas palmeiras. Isso quando não se constrói com
o fundo virado para o mar. A transposição acrítica de um padrão de construção ensimesmado
para um país tropical, ensolarado e pungente,
é um dos nossos pecados mais inqualificáveis. E, o que é mais triste, não vejo
ninguém se penitenciando por isso. Muito ao contrário, o que se vê é uma horda
de corretores de imóveis pregando impunemente a palavra do Anti-Cristo. E compradores ávidos para garantir seu lugar no "Paraíso".
Assim que, ao transitar pelas ruas sem calçadas de Búzios,
fico imaginando qual teria sido a reação de Deus se tivesse dado um pulinho por
ali. Para um Cara que achou Chartres insuficiente, deparar com uma aberração como
esta que produzimos por aqui nos valeria um raio demolidor de proporções catastróficas. Mereceríamos. O que temos feito com a obra
divina no Brasil, um país com o qual Ele foi tão generoso, é para mandar o
meteoro já. E viria tarde.
Andréa Gaspar