Sunday, February 12, 2017

Búzios

Búzios

(Suave, mas nem tanto, na nave)

Deus, certa vez, numa crônica (Inquilinos) de Luís Fernando Veríssimo, vem à Terra e pede a devolução do mundo tal e qual ele nos entregara. Nem a Catedral de Chartres é capaz de demover Deus da ideia de que o mundo criado por Ele era mais lindo do que o mundo com as “melhorias” implementadas pela humanidade. Chartres levou mais de trezentos anos para ser concluída, no auge da Idade Média, uma época em que não contávamos com grandes saberes da ciência para superar problemas de cálculo e estrutura. Foi erguida por uma comunidade que viveu sob a égide do temor a Deus e da Igreja Católica, que sabe-se lá quanta gente mandou para a fogueira durante os trezentos anos que a sua construção durou. E é um monumento à Arte. Uma ode ao Belo. Tive a oportunidade de estar em Chartres por mais de uma vez e é um desses lugares no mundo aonde voltaria sempre que pudesse (acho que LFV também,  já que a Catedral é tema recorrente nas suas crônicas). Conheço outras catedrais góticas, talvez, até mais importantes do que Chartres, mas – de fato – há algo ali que nos aproxima do divino. É bem verdade que temos estragado o mundo que Deus criou com a nossa ganância e ignorância estética, mas – Deus que me perdoe – Chartres constitui exceção. Suponho que, se estragar a obra divina for mesmo uma imposição da nossa natureza humana, ao menos que possamos estragá-la com construções da grandeza de Chartres. E aqui não me refiro apenas à Catedral, mas também à cidade com suas modestas casinhas aldeãs, que se curvam ante a imponência da Catedral, como se tudo e todos soubessem exatamente onde caber para que sacralidade do lugar possa por alguns instantes nos transportar para outro mundo e outros tempos. 

Enfim, mas é de Búzios que venho falar. Com um oceano de distância, aqui para os lados da América do Sul, mais precisamente no Estado do Rio de Janeiro, fica Búzios. Essa joia do litoral fluminense que encantou Brigitte Bardot. Uma cidade que soube se iniciar com a modéstia dos pescadores da região, que construíram na sua orla casas singelas e simpáticas condizentes com a exuberância da natureza que não admitia concorrência. Ainda hoje esse núcleo pitoresco sobrevive, testemunha de uma cidade que, assim como sua musa, homenageada numa estátua de bronze de gosto duvidoso,  foi bela. Deslumbrante! Mas – diferentemente de Chartres – Búzios foi vítima – assim como tantas outras cidades do litoral brasileiro – da ganância especulativa, da falta de planejamento urbano, do mau gosto de uma elite que reproduz no seu quintal - sem nenhuma espécie de senso estético – os padrões arquitetônicos do cenário da última novela da Globo, sem falar nos abomináveis condomínios, presídios residenciais, que se multiplicam como praga de norte a sul do país. 

Tragicamente, essa força vital de mar, sol e florestas da Mata Atlântica, recortada num litoral pontilhado por um relevo de rochas do Período Cambriano, encontra-se agora solapada por uma rede viária improvisada, ladeada por um comércio de ocasião que – esse sim, Deus, não valeu nenhuma flor de cada árvore derrubada – mas, principalmente, solapada por um sem-número de construções que se pretendem luxuosas, mas que se repetem na sua única função de fazer a gente perder a fé na humanidade. Tudo é impróprio: a qualidade do material de construção, as janelas claustrofóbicas de madeira, que pretendem imitar casas do norte europeu. O pé direito baixo, aumentando ainda mais a sensação de claustrofobia que sentimos dentro dos imóveis. As muradas que se erguem acima da altura do mar e nos impedem de avistar a lua, as ondas se quebrando e o vento misterioso que se esfrega nas palmeiras. Isso quando não se constrói com o fundo virado para o mar. A transposição acrítica de um padrão de construção ensimesmado para um país tropical,  ensolarado e pungente, é um dos nossos pecados mais inqualificáveis. E, o que é mais triste, não vejo ninguém se penitenciando por isso. Muito ao contrário, o que se vê é uma horda de corretores de imóveis pregando impunemente a palavra do Anti-Cristo.  E compradores ávidos para garantir seu lugar no "Paraíso".  

Assim que, ao transitar pelas ruas sem calçadas de Búzios, fico imaginando qual teria sido a reação de Deus se tivesse dado um pulinho por ali. Para um Cara que achou Chartres insuficiente, deparar com uma aberração como esta que produzimos por aqui nos valeria um raio demolidor de proporções catastróficas.  Mereceríamos. O que temos feito com a obra divina no Brasil, um país com o qual Ele foi tão generoso, é para mandar o meteoro já. E viria tarde.


Andréa Gaspar